Como a neurociência moderna pode acrescentar aos estudos clássicos de psicologia na compreensão dos efeitos do isolamento materno sobre o neurodesenvolvimento
Mães frequentemente precisam levar seus filhos para o ambiente de trabalho por falta de assistência e suporte social para o cuidado destes. Este fenômeno é mais frequente nas famílias cujas mães sofrem múltiplos processos de vulnerabilização, vendo-se obrigadas a uma escolha ingrata: levar seus filhos para acompanha-la no trabalho ou não ter como alimentá-los. Recentemente fomos chocados com o episódio do menino Miguel Otávio, no Recife. Ficamos chocados diante de casos extremos como o do episódio citado. No entanto, a estrutura que o permitiu acontecer tem resultados sociais igualmente impactantes, porém pouco evidenciados.
A pouca atenção talvez aconteça porque a associação entre o fenômeno que o causa e as consequências destes estejam separadas em grandes intervalos de tempo. Isto é, apenas são notados anos depois, quando a criança se torna adulta. O objetivo deste texto não será discutir as questões sociais subjacentes a estes cenários tão cotidianos em nossa sociedade, mas se prestará a apresentar as potenciais consequências para o desenvolvimento destes indivíduos em condição de vulnerabilidade. Qual será o impacto biológico sobre o neurodesenvolvimento que estas crianças sofrerão?
Parte destas respostas começaram a ser construídas há mais de 70 anos por psicólogos comportamentais que primeiramente descreveram as consequências sobre o comportamento destes indivíduos. A neurociência moderna, por sua vez, começa a descrever as bases materiais no cérebro que resulta nestes comportamentos desadaptativos.
O estudo da importância do cuidado materno para o desenvolvimento de uma criança foi inaugurado na década de 50, pelo psicólogo John Bowlby e posteriormente explorado por outros psicólogos como Harry Harlow e Donald Winnicott. Bowlby postulou que os comportamentos de apego são instintivos e que seriam ativados por quaisquer condições que pareçam ameaçar a conquista do vínculo afetivo, como separação, insegurança e medo. Portanto, o medo de estranhos representaria um importante mecanismo de sobrevivência conservado evolutivamente. Isto é, bebês expressariam comportamentos inatos que ajudariam a garantir proximidade e contato com a mãe ou figura de apego (por exemplo, chorando, sorrindo, rastejando etc.). Estes comportamentos tornam claro que a separação a curto prazo de uma figura de apego leva a angústia e sofrimento na criança.
John Bowlby acreditava que o relacionamento entre a criança e sua mãe durante os primeiros cinco anos de vida era crucial para a socialização. Este relacionamento afetivo desenvolvido com a mãe atuaria como um protótipo para todos os futuros relacionamentos sociais, e impedi-lo, portanto, poderia ter graves consequências no desenvolvimento sócio-afetivo do infante. As consequências a longo prazo da privação materna incluiriam delinqüência, inteligência reduzida, agressividade, depressão, e psicopatias do afeto. Logo, a privação materna durante um período crítico do desenvolvimento impediria a capacidade de demonstrar afeto ou preocupação pelos outros. Tais indivíduos agiriam por impulso, com pouca consideração pelas consequências de suas ações. Por exemplo, não demostrando culpa por comportamentos antissociais.
Parte destas hipóteses construídas por Bowlby foram baseadas em seus estudos com jovens delinquentes (Bowlby, 1944). Ele estudou 44 delinquentes juvenis em uma clínica de assistência social, verificando que mais da metade dos jovens infratores haviam sido separados de suas mães por mais de seis meses nos primeiros cinco anos de vida. No grupo controle, apenas dois passaram pelo processo separação. Ainda, somente aqueles que haviam sido privados do afeto materno apresentaram psicopatias do afeto (eles não eram capazes de se importar ou sentir afeição pelos outros). No entanto, o famoso estudo de Bowlby estava longe de ser perfeito. Ele sabia quais crianças estavam no grupo de delinquentes e quais estavam no grupo de controle, e o próprio Bowlby foi quem conduziu as avaliações psiquiátricas e fez o diagnóstico de psicopatia da afeição. Consequentemente, seus resultados estariam inconscientemente enviesados por suas próprias expectativas, resultando em diversas críticas nas décadas seguintes à medida que novas informações eram incorporadas ao campo de estudo.
No entanto, apesar das limitações de seus estudos, Bowlby não estava ao todo errado, sobretudo a respeito da questão central do cuidado materno sobre o neurodesenvolvimento infantil. Parte do seu trabalho se sustentou nos estudos de etologia animal de pesquisadores antecessores, como os processos de imprinting (impressão) descritos por Konrad Lorenz (1930). Do mesmo modo, na década seguinte, foi sustentado pelos estudos de Harlow (1958) com privação materna em macacos, que mostrou que os macacos criados isolados da mãe sofriam problemas emocionais e sociais na vida adulta. Os animais privados do cuidado materno nunca formaram um vínculo e, como tal, cresceram mais agressivos e com problemas para interagir com outros macacos. Evidências mais recentes (Bifulco et al., 1992) mostram que mulheres que perderam mães, por separação ou morte, antes dos 17 anos dobra o risco de depressão e distúrbios de ansiedade em mulheres adultas. A taxa de depressão foi mais alta em mulheres cujas mães haviam morrido antes dos 6 anos de idade. Ainda, há evidências de que crianças se desenvolvem melhor com uma mãe que é feliz em seu trabalho, do que uma mãe frustrada por ficar em casa (Schaffer, 1990).
Paralelamente nos anos seguintes, estudos em diversas espécies animais demonstrando que o isolamento materno resulta em comportamentos tipo-depressivo e agressividade, hipofunção da neurotransmissão serotonérgica no hipocampo, e desregulação do eixo Hipófise-Pituitária-Adrenal, um eixo neuroendócrino responsável por regular os comportamentos de enfrentamento diante do estresse. Porém, os caminhos neurais prejudicados que resultariam nestes comportamentos desadaptativos ainda não haviam sido propriamente esclarecidos.
Coube às ferramentas da neurociência moderna esclarecê-los nas últimas décadas. Por exemplo, um estudo recente de optogenética e quimiogenética adicionou uma peça de evidência a este fenômeno. Pesquisadores demonstraram que a ativação do hipocampo ventral em roedores, uma região associada à regulação de comportamentos relacionados à ansiedade e comportamentos defensivos, regula o comportamento de agressão direcionados à um roedor invasor após um estímulo estressor (choque às patas) (Chang, C. & Gean, P., 2019). O curioso é que o trabalho demonstrou que o hipocampo ventral regula o comportamento de agressão apenas em roedores isolados de suas mães após o desmame, enquanto que animais que tiveram o cuidado materno, após receberem o estímulo estressor, apenas apresentaram comportamentos tipo-ansiedade, sem o componente de agressão.
O estudo foi conduzido induzindo a expressão de um receptor sensível à luz em neurônios glutamatérgicos do hipocampo dorsal que estavam conectados ao hipotálamo ventromedial. Quando iluminados com uma luz de comprimento de onda conhecido, estes receptores ativavam o disparo destes neurônios no hipocampo ventral que, por sua vez, ativavam neurônios no hipotálamos ventromedial já conhecidos por regular comportamentos de agressão. A surpresa dos pesquisadores foi notar que apenas os roedores que foram submetidos ao isolamento materno apresentavam o comportamento de agressão a um invasor, enquanto os animais controle, com contato materno, não apresentaram o comportamento de agressão, mas apenas comportamentos tipo-ansiedade, evitando áreas abertas e vulneráveis da arena comportamental.
Estudos como este demonstram que o isolamento materno altera as redes neurais durante o desenvolvimento. A lição que podemos tomar é que o cuidado materno é fundamental para o desenvolvimento adequado do cérebro dos indivíduos e oferece pistas para a solução dos problemas relacionados à violência. Uma sociedade saudável deve oferecer às mães em condições de vulnerabilidade suporte para o cuidado de seus filhos, sob o risco de ter que lidar com as duras penas das consequências da privação materna sobre o comportamento destes cidadãos no futuro. Isto é, talvez a desigualdade no seio familiar esteja diretamente relacionada às questões de violência e segurança pública, uma vez que crianças privadas do cuidado materno está diretamente relacionada ao sofrimento infantil e dificuldade de se ajustar ao ambiente social.
REFs:
Bifulco, A., Harris, T., & Brown, G. W. (1992). Mourning or early inadequate care? Reexamining the relationship of maternal loss in childhood with adult depression and anxiety. Development and Psychopathology, 4(03), 433-449.
Chang, C. & Gean, P. (2019) The Ventral Hippocampus Controls Stress-Provoked Impulsive Aggression through the Ventromedial Hypothalamus in Post-Weaning Social Isolation Mice. Cell Reports 28 (5), 1195-205.
Lorenz, K. (1935). Der Kumpan in der Umwelt des Vogels. Der Artgenosse als auslösendes Moment sozialer Verhaltensweisen. Journal für Ornithologie 83, 137–215.
Schaffer, H. R. & Emerson, P. E. (1964). The development of social attachments in infancy. Monographs of the Society for Research in Child Development, 29 (3), serial number 94.
Harlow H. F., Dodsworth R. O., & Harlow M. K. (1965). Total social isolation in monkeys. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. Retrieved
McLeod, S. A. (2007). Bowlby's attachment theory. Retrieved from www.simplypsychology.org/bowlby.html
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