Quem dança seus males espanta

Wednesday, 17 de June de 2020
Estudos de imagens cerebrais podem revelar as coreografias neurais por trás da dança

A capacidade de dançar e seguir um ritmo é tão natural a nós humanos que a tomamos por uma habilidade garantida em nossa espécie e em outros animais. Quando vemos vídeos de um cachorro ou pássaro se movendo com uma música, assumimos que esta capacidade é presente em outras espécies animais também. Mas será que este instinto é, para todos os efeitos, conservado em outros animais, ou este de fato é uma novidade evolutiva entre os seres humanos?

A verdade é que nenhum outro fenômeno comparável na mesma escala ocorre em outros mamíferos, e talvez em nenhum outro lugar do reino animal. A dança é um comportamento humano universal relacionado a rituais de grupo retratada em artes rupestres que remontam a mais de 20.000 anos e pode ser tão antiga quanto as capacidades humanas para andar e correr sobre duas pernas, datando de 2 a 5 milhões de anos.

Pinturas rupestres nos Abrigos Rochosos de Bhimbetka. Pintura do período mesolítico representando a dança comunitária.

A dança é a prática cultural coletiva capaz de gerar maior mobilização e sincronismo de grupo. Porém, talvez pelas dificuldades técnicas em se acessar sistemas multimodais (auditivo, visual, motor, sinestésico, etc.), até recentemente os neurocientistas deram pouca atenção a esta forma de expressão humana. No entanto, o aumento da resolução espacial e temporal de técnicas de mapeamento cerebral associado a protocolos experimentais criativos permitiram os primeiros estudos sobre o funcionamento do cérebro de dançarinos amadores e profissionais.

A verdade é que além de buscar compreender os mecanismos neurais envolvidos na prática da dança, os cientistas também têm interesse em quantificar os efeitos favoráveis ao cérebro destas práticas. Por exemplo, a dançar aumenta a capacidade de formar conexões bem como de estimular substâncias que sustentam a neuroplasticidade, como o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF). Por estas razões a dança pode ser usada para tratar indivíduos com diversas condições neurodegenerativas, como a doença de Parkinson, um distúrbio neurológico progressivo do movimento que, em parte, diz respeito à função integradora do movimento e da cognição.

O CÉREBRO SOB A DANÇA

Estudos de imagens contribuíram para identificar regiões do cérebro que estão engajadas no aprendizado e o desempenho da dança. O achado principal é que durante a dança, há uma integração entre sistemas multimodais (auditivo, visual, motor, sinestésico, etc.). Por exemplo, o ato de assistir a uma coreografia simples ativa áreas no córtex pré-motor envolvidas no planejamento das ações observadas, indicando que ensaiamos mentalmente o que vemos. Ao observar uma coreografia, neurônios espelhos também são ativados, o que nos permite estimar os estados mentais do outro.

Já quando reproduzimos os passos de dança, informações cinestésicas são integradas às informações visuais e espaciais. Isto é, você sente o posicionamento do seu tronco e membros, mesmo com os olhos fechados, e uma representação mental da articulação do corpo em referências às pistas espaciais fornecidas pelo sistema visual é construída.

Em circutos subcorticais também ocorre a integração dos estímulos auditivos que orientam o ritmo da dança. Estudos usando imagens PET (Positron emission tomography) compararam imagens do cérebro obtidas enquanto sujeitos executavam passos de tango com os pés na ausência e presença de música. Ao eliminar as regiões do cérebro que as duas tarefas ativaram em comum, restaram as áreas críticas para a sincronização do movimento com a música. Esta subtração removeu praticamente todas as áreas motoras, exceto uma parte do cerebelo que recebe entrada da medula espinhal – o vermis anterior – reforçando o papel do cerebelo na coordenação de passos com a música. Em um segundo estudo, ao se subtrair as áreas cerebrais ativadas ao bater o pé inconscientemente sob a presença e ausência de um ritmo musical verificou-se que a atividade do núcleo geniculado medial (MGN) estava associada ao sincronismo da música com o ritmo próprio de bater o pé.
Ainda, um aspecto importante da dança é que os movimentos corporais são estruturados em padrões espaciais.  Isto é, a estruturas das coreografias tendem a possuir uma organização modular composta por seções distintas que se entrelaçam ciclicamente. Devido a essa organização combinatória, a dança é passível de análise e descrição gramatical detectados por potenciais relacionados a eventos (Event-Related Potentials - ERP), o que atribui à dança alguma relação com a linguagem não-verbal. Portanto, a dança também está relacionada a funções cognitivas superiores.

A DANÇA ALTERA O CÉREBRO

A dança envolve um esforço mental e interação social que pode ajudar a reduzir os riscos de demência. Numerosos estudos mostram que a dança ajuda a reduzir o estresse, aumenta os níveis de serotonina e ajuda a desenvolver novas conexões neurais, especialmente em regiões envolvidas na função executiva, memória de longo prazo e reconhecimento espacial. Brown e Parsons (2008), em um artigo na revista Scientific American, sugerem que a sincronização da música e do movimento (a dança) cria uma alça de retroalimentação que gera "duplo prazer", pois a música estimula os centros de recompensa do cérebro, enquanto a dança ativa seus circuitos sensoriais e motores.

É importante destacar que estes benefícios se diferenciam do mero exercício físico. Isto porque grande parte das pesquisas sobre os benefícios da dança dissociam os efeitos da atividade física associada à prática. Tanto a dança quanto a atividade física estão relacionadas a ganhos de memória e fortalecimento das conexões neuronais. Quando as intervenções de dança são comparadas à atividade física convencional de mesma intensidade é observado um ganho no volume de áreas específicas do cérebro, incluindo o córtex cingulado, ínsula, corpo caloso e córtex sensorimotor apenas para os indivíduos submetidos às intervenções de dança.  Ainda, somente a dança foi associada a um aumento nos níveis plasmáticos de BDNF, um fator neurotrófico associado ao aumento da neuroplasticidade e neuroproteção.

A DANÇA COMO TERAPIA PARA DISTÚRBIOS MOTORES

As funções essenciais fundamentais à dança, que incluem o controle do equilíbrio, da postura e da oscilação, são sensíveis aos efeitos do treinamento. Portanto, pacientes com deficiências motoras poderiam se beneficiar do aprendizado resultante destas práticas.

Por exemplo, a dança tem sido utilizada na terapia com pacientes acometidos pela Doença de Parkinson. A Doença de Parkinson pertence a um grupo de condições chamadas distúrbios do sistema motor, que se desenvolvem quando as células produtoras de dopamina no cérebro são perdidas. Os principais sintomas motores da doença de Parkinson incluem bradicinesia (movimento lento), rigidez dos membros e tronco, tremores e prejuízo no equilíbrio e coordenação.

Sendo assim, a dança pode ajudar a aliviar esses sintomas uma vez que estudos sobre os efeitos de uma estimulação auditiva rítmica com estes pacientes encontraram melhorias significativas na função da marcha e dos movimentos das extremidades superiores. Portanto, indivíduos com Parkinson falam e andam melhor se tiverem uma pista rítmica constante. A música e a dança podem oferecer pistas externas que atuariam como um metrônomo para desviar o fluxo de informação nos sistemas subcorticais degenerados.

Em outro estudo, Wayne e colaboradores (2017) afirmam que o tai chi, uma arte marcial que envolve movimentos coreografados, reduzem a suscetibilidade a quedas, muito frequente entre idosos e indivíduos que sofrem de distúrbios do movimento. Esta melhora é atribuída à “prática consciente do movimento”, que levaria a um aumento da flexibilidade, força, e desempenho cognitivo dos indivíduos.

 
POTENCIAL DO fNIRS PARA O ESTUDO DA DANÇA EM DISTÚRBIOS MOTORES

Estes estudos sobre o papel da dança em distúrbios motores reforçam a importância das modalidades sensoriais individuais na integração multimodal da experiência motora. A sugestão é que existe um benefício terapêutico potencial na estimulação destes sistemas para aqueles com atrasos no desenvolvimento, com distúrbios do desenvolvimento da coordenação, ou pacientes que sofreram AVC, assim como em uma infinidade de condições neurodegenerativas.

Portanto, estudos sobre as influências relativas de circuitos multimodais, como a visão, a audição e a somatossensibilidade, merecem aprofundamento em prol da saúde destes pacientes. Parte da limitação destes estudos é a necessidade do repouso para a aquisição de imagens funcionais do cérebro. Neste sentido, novas tecnologias de imageamento funcional portáteis como a Espectroscopia Funcional em Infravermelho Próximo (fNIRS) podem auxiliar a abrir novos horizontes neste campo de estudos. Permitindo o estudo dos impactos da dança em ambientes mais naturais.

Por exemplo, que tal um experimento em que a atividade dos córtices motores de pacientes com a Doença de Parkinson são avaliados durante a marcha na ausência e presença de um ritmo musical? Será que a música aumentaria a atividade nestes córtices? Será que a atividade nestes córtices se correlacionaria com um melhor desempenho motor? Em outro estudo poderíamos também avaliar o efeito do treinamento na dança sobre a função destas regiões. Será que o treinamento em dança aumentaria a função nos córtices motores de pacientes com a Doença de Parkinson durante uma atividade motora comparados à pacientes que não receberam treinamento em dança? Até então, um trabalho de Noah e colaboradores (2015) demonstrou que é possível replicar achados de ressonância magnética funcional (fMRI) utilizando o fNIRS em uma tarefa natural de dança, oferecendo um suporte metodológico para aqueles que desejarem se aventurar nestes horizontes.

 

REF.:

Brown S, Parsons LM. The neuroscience of dance. Sci Am. 2008; 299(1):78-83. doi:10.1038/scientificamerican0708-78

Brown S, Martinez MJ, Parsons LM. The neural basis of human dance. Cereb Cortex. 2006;16(8): 1157–67.

Karpati FJ, Giacosa C, Foster NE, Penhune VB, Hyde KL. Dance and the brain: a review. Ann N Y Acad Sci. 2015;1337(1):140–6.

Leisman G, Aviv V (2020) A Neuroscience of Dance: Potential for Therapeusis in Neurology. In: Colombo B. (eds) Brain and Art. Springer, Cham.

Noah, J. A., Ono, Y., Nomoto, Y., Shimada, S., Tachibana, A., Zhang, X., Bronner, S., Hirsch, J. (2015) fMRI Validation of fNIRS Measurements During a Naturalistic Task. J. Vis. Exp. (100), e52116, doi:10.3791/52116.

Wayne PM, Gagnon MM, Macklin EA, Travison TG, Manor B, Lachman M, Lipsitz LA. The mind body-wellness in supportive housing (Mi-WiSH) study: design and rationale of a cluster randomized controlled trial of Tai Chi in senior housing. Contemp Clin Trials. 2017;60:96–104.

 
 


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Autor:

Anderson Leão

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